Na tradição sobre as múmias e nos filmes de terror nos quais elas aparecem, qualquer pessoa que perturbe a tumba de uma delas incorrerá na sua ira. Esta idéia está baseada nas maldições que, supostamente, os antigos egípcios inscreveram no limiar de seus túmulos. Tais advertências agiriam como antigos sistemas de segurança e tinham por objetivo fazer com que os assaltantes das tumbas tivessem medo de fugir com os bens enterrados nas sepulturas. Embora se acredite que essa lenda seja baseada no folclore egípcio, é até bem provável que a história da maldição da múmia tenha surgido na literatura. Uma fonte amplamente aceita é o conto de Louisa May Alcott intitulado Perdido em uma Pirâmide: a Maldição da Múmia, publicado em 1869.
Quando os árabes chegaram ao Egito no VII século da era cristã não conseguiam ler os hieróglifos e muita coisa lhes parecia misteriosa. As múmias bem preservadas também despertavam estranheza e as lendas sobre a maldição dos faraós começou a surgir. Diversas histórias fantásticas circulavam. Eles acreditavam que se alguém entrasse numa tumba e proferisse a fórmula mágica apropriada, seria capaz de materializar objetos feitos invisíveis pelos antigos egípcios. Também acreditavam que as múmias podiam retornar à vida através de meios mágicos e que as tumbas estavam magicamente protegidas contra invasores por meio de maldições.
LORD CARNAVONEm 1923, algumas semanas após a descoberta da tumba de Tutankhamon, Lord Carnavon, o homem que financiou o projeto e que vemos na foto ao lado, foi picado por um mosquito e acabou morrendo em conseqüência da infecção generalizada que daí resultou. No momento de sua morte houve uma total falta de luz no Cairo e seu cachorro, que estava na Inglaterra, começou a uivar até morrer. Os jornais noticiaram amplamente os fatos e vários artigos foram publicados sugerindo que uma antiga maldição proferida contra aqueles que profanassem a tumba tinha sido despertada. A lenda da maldição da múmia começava a se espalhar. Até o fato do canário pertencente a Howard Carter ter sido engolido por uma naja, um símbolo faraônico, no dia da abertura da tumba, foi atribuído a ela. A história reaparecia regularmente sempre que outra pessoa envolvida na expedição morria e isso ocorreu até mesmo com o falecimento da filha de Carnarvon, já nos anos oitenta.
Os fatos reais parecem ter sido bem diferentes. As luzes realmente se apagaram no Cairo por alguns minutos quando Carnavon faleceu, mas interrupções no fornecimento de energia elétrica naquela cidade eram bastante comuns no início do século XX e continuam sendo até hoje. A cadela do milionário, chamada Susie, teria falecido exatamente às duas horas da madrugada, momento exato do óbito. Ninguém sabe se este fato é ou não verdadeiro, mas parece suspeito, especialmente porque os fusos horários de Egito e Inglaterra são diferentes. A história poderia ter um pouco mais de credibilidade se Susie tivesse morrido às duas da madrugada pelo horário do Cairo. Embora Carter tivesse mesmo um canário, ele presenteou sua amiga Minnie Burton com o passarinho e ela, por sua vez, presenteou um gerente de banco com a ave, obviamente viva.
Até hoje muita gente ainda pensa que existe uma maldição na tumba de Tutankhamon e que a maioria das pessoas que entraram nela na época de sua descoberta morreram de mortes estranhas. Isso absolutamente não é verdade. Ao ser aberta a tumba, 26 pessoas estavam presentes. Apenas seis morreram num prazo de dez anos. Ao ser aberto o sarcófago, havia 22 pessoas presentes. Apenas duas morreram no prazo de dez anos. Quando a múmia foi desembrulhada, dez pessoas presenciaram o fato. Nenhuma morreu no prazo de dez anos. O médico que realizou a autópsia da múmia viveu por mais 20 anos. Quanto a Howard Carter, o descobridor do túmulo e o primeiro a entrar nele em 1922, só veio a falecer em 1939.
Um epidemiologista australiano realizou trabalho de pesquisa que demonstra, segundo ele, que a maldição da tumba de Tutankhamon não passa de mais uma lenda urbana. Comparando a sobrevida dos que estiveram expostos à maldição da múmia com a de seus familiares que não se expuseram, o Dr. Mark Nelson, da Monash University, em Melburne, demonstrou que não há nenhuma base epidemiológica provando que a profanação do túmulo provocou as mortes. A epidemiologia é a ciência que estuda as epidemias, ou seja, as doenças que atacam muitos indivíduos ao mesmo tempo.
O Dr. Mark Nelson baseou-se nos escritos de Carter e elaborou duas listas: uma de 25 pessoas que estiveram envolvidas com a expedição e presentes em seus principais eventos e outra de 19 familiares delas, que não participaram das descobertas. Ele definiu a exposição à maldição como estando presente no rompimento dos selos e na abertura da terceira porta da tumba em 1922, ou na abertura do sarcófago, na abertura dos caixões e no exame da múmia, em 1926. Cada pessoa teria tido, então, entre uma e quatro oportunidades de se expor ao feitiço. O grupo de controle de 19 pessoas que não foram expostas à maldição é formado principalmente por cônjuges, sobretudo esposas. Lutando contra o fato de que as mulheres não existiam para a imprensa dos anos vinte, o pesquisador localizou a maioria das pessoas envolvidas procurando em jornais antigos e livros.
Aqueles que não ficaram expostos à maldição viveram aproximadamente nove anos mais do que os que estiveram expostos. Porém, as pessoas que ficaram expostas já eram mais velhas do que aquelas que não ficaram. Cinco anos da diferença foram explicados por esse motivo. É de se esperar que um grupo de pessoas mais velhas morra antes. O fato de que havia mais mulheres no grupo não exposto, aliado ao fato de que as mulheres geralmente vivem mais tempo, explicam os outros quatro anos da diferença, segundo o pesquisador. Ele concluiu que o resultado de sua análise mostra que não há nenhuma evidência epidemiológica da real existência da famosa maldição da múmia.
ROSTO DE UMA MÚMIAEmbora tenha sido divulgado que havia uma inscrição ameaçadora numa pedra esculpida encontrada na entrada da tumba, a verdade é que essa pedra nunca existiu. Jamais foi encontrada uma maldição por escrito na tumba de Tutankhamon. Mas deve-se notar que verdadeiras maldições foram encontradas em outros túmulos. Elas aparecem em tumbas privadas do Império Antigo (c. 2575 a 2134 a.C.) e consistem basicamente de uma invocação feita pelo morto pedindo condenação dos violadores dos túmulos no mundo subterrâneo. Uma delas afirma que para quem fizer qualquer coisa contra aquela tumba um crocodilo virá contra ele na água e uma serpente virá contra ele em terra. Diz ainda que não será o falecido que fará alguma coisa contra o violador, mas o deus é que irá julgá-lo. Isso, naturalmente, dá um peso muito maior para a ameaça. Acima o rosto de uma múmia exposta no Museu Egípcio de Milão. Foto © Roseli M. Comíssoli de Sá.
Outra inscrição nos apresenta, talvez, a antiga origem da frase "que você tenha em dobro de tudo aquilo que me desejar", que usamos atualmente. Ela diz:
Para qualquer coisa que você possa fazer contra esta minha morada do Oeste, o mesmo será feito contra sua propriedade. Eu sou um excelente sacerdote leitor, extraordinariamente instruído em feitiços secretos e em toda a sorte de magia. Qualquer pessoa que entre impura nesta minha tumba, depois de ter comido as abominações que os bons espíritos abominam, ou que não tenha se purificado como deveria, eu o agarrarei como um ganso [torcendo seu pescoço], enchendo-o de terror, fazendo-o ver fantasmas na terra. Mas para qualquer um que entre nesta minha tumba sendo puro e pacífico com relação a ela, eu serei seu arrimo protetor no Oeste, na corte do grande deus.
Uma inscrição da VI dinastia (c. 2323 a 2150 a.C.) ameaça:
Quanto àqueles que invadirem minha tumba (...) Saltarei sobre eles como sobre um pássaro; o grande deus julgará seus atos.
Havia ainda uma maldição menos usual, mas terrível — a Maldição do Burro — que ameaçava o violador da tumba com estupro por um burro, o animal do deus Seth. Da XVIII dinastia (c. 1550 a 1307 a.C.) também nos chegaram maldições assustadoras:
Quem invadir minhas propriedades, danificar minha tumba, ou retirar dela minha múmia, será punido pelo deus-Sol. Não legará seus bens a seus filhos, seu coração não terá prazer em viver; ele não receberá água [para seu espírio beber] na tumba e sua alma será destruída para sempre.
E outra, mais completa, adverte que qualquer um que danificasse o túmulo perderia seus cargos e honras terrenas, seria incinerado em uma fornalha em ritos de execração, seria virado de cabeça para baixo e afogado no mar, não teria nenhum sucessor, não teria qualquer tumba ou oferendas funerárias para si e seu corpo se deterioraria porque ficaria sem alimento e seus ossos pereceriam.
Houve casos de pessoas afetadas por indisposições e infecções por ocasião da abertura de tumbas lacradas. Isso pode ser resultado da presença de fungos venenosos e de bactérias no ambiente. Também gases venenosos causaram indisposições a arqueólogos, tais como dores de cabeça e falta de ar. Quando um desses casos ocorreu, na década de 40 do século passado, em um túmulo que continha íbis mumificadas, os supersticiosos operários atraibuíram o fato à punição do deus Thoth.
O biólogo alemão Gotthard Kramer explica que os corpos foram enterrados com alimentos, como carnes legumes e frutas, destinados ao uso na vida futura e, com o passar do tempo, esta comida atraiu insetos, criou bactérias e produziu grandes quantidades de esporos de mofo. Quando arqueólogos ou ladrões de túmulos abrem uma tumba, estes esporos, principalmente dois tipos altamente nocivos, se espalham no ar e atingem os pulmões dos intrusos podendo causar reações alérgicas que vão de congestionamento a sangramento nos pulmões. As toxinas podem ser particularmente prejudiciais para pessoas com sistema imunológico debilitado. Além disso, as paredes de alguns túmulos podem estar cobertas com bactérias que atacam o aparelho respiratório. Algumas múmias também contém bolor. Cientistas ainda descobriram gás de amônia, formaldeído e outras substâncias tóxicas dentro de sarcófagos lacrados. Em fortes concentrações elas poderiam causar queimaduras nos olhos e nariz, sintomas semelhantes ao da pneumonia e, em casos muito extremos, morte. Muitas das escavações abrigam morcegos e suas fezes carregam fungos que podem causar doenças respiratórias. A morte pode ser consequência do ataque destes agentes, isoladamente ou em conjunto, efetivamente infligindo o castigo prometido inscrito na porta da tumba.
Quando Lord Carnavon faleceu, surgiu a especulação de que haveria algum tipo de veneno presente no túmulo de Tutankhamon. Na época um jornalista inglês escreveu: Pode-se atribuir ao clima de mistério que acompanha tudo que é egípcio a história amplamente divulgada de que, ao abrir o túmulo de Tutankhamon, Lord Carnavon se expôs à fúria de alguma influência maligna, ou que ele foi envenenado por substâncias deixadas na tumba há milhares de anos. Se foi isso que ocorreu não se sabe. Em época mais recente, entretanto, um fato mostra que não seria impossível que ocorresse a introdução de veneno em uma tumba, seja na atualidade ou num passado longínquo. Ulgum tipo de pó espalhado pelo chão, já normalmente empoeirado, poderia dar conta do recado.
O egiptólogo Zahi Hawass descobriu, no ano 2000, no oásis de Bahariya, uma tumba que pode ter sido protegida com o uso de substâncias tóxicas. Ao abrir o túmulo que pertencia a um vizir do faraó Apries (589 a 570 a.C.), chamado Zed-Khonsu-ef-ankh, o arqueólogo sentiu um tremendo impacto. Ele narra: Quando entrei na câmara sepulcral, vi um sarcófago antropóide muito grande. Jamais esquecerei esse momento. A câmara funerária era muito pequena mas um lindo sarcófago foi encontrado em seu interior. Nesse momento da descoberta, senti como se flechas em chamas estivessem me atacando. Meus olhos se fecharam e não consegui respirar por causa do mau cheiro. Olhando para dentro da sala, descobri uma camada muito grossa de pó amarelo ao redor do sarcófago antropóide. Eu não conseguia andar e não li o nome do proprietário do túmulo. Voltei correndo para fora por causa desse cheiro. Nós trouxemos máscaras para os trabalhadores que começaram a remover a substância. Descobri que se tratava de hematita, retirada de uma pedreira próxima, em Bahariya. Mas eu não consegui entender porque esse material estava lá. Sua função não ficou clara. Especulou-se que o pó pode ter sido colocado ali para proteger a tumba de visitantes indesejados. Considerando-se que o sarcófago foi encontrado inviolado, parece que o estratagema funcionou.
Os peritos que examinaram o caso de Lord Carnarvon, entretanto, acreditam que as toxinas da tumba não tiveram qualquer papel no falecimento não tão intempestivo dele. Em verdade ele era um doente crônico muito antes de pisar no túmulo de Tutankhamon e sua morte ocorreu meses depois de sua exposição aos eventuais perigos. Caso ele tivesse se exposto às ameaças biológicas da tumba, os sintomas teriam se manifestado mais cedo. Alguns arqueólogos chegam a afirmar que, dadas as condições sanitárias gerais daquela época, Lord Carnavon estaria mais seguro dentro do que fora da tumba. De fato, os egiptólogos não registram qualquer caso de conseqüências negativas causadas por fungos ou bactérias em arqueólogos ou turistas. Se usam máscaras ou outros materiais protetores, quando o fazem, os arqueólogos estão preocupados em se proteger da poeira muito mais do que do mofo e dos fungos. Outro aspecto a ser considerado é que não existe meio de se determinar se um elemento prejudicial à saúde humana está ali desde a antiguidade ou é uma contaminação atual.
Alguns arqueólogos argumentam que como as maldições se destinavam aos ladrões de tumbas e uma vez que os egiptólogos, através de suas descobertas e publicações, contribuem para que o nome do morto, e consequentemente sua alma, vivam para sempre, é bem possível que eles não sejam punidos, mas, muito ao contrário, abençoados pelas múmias.
domingo, 29 de março de 2015
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